sexta-feira, novembro 08, 2002

Quindins na portaria
(Martha Medeiros)

Estava lendo o novo livro do Paulo Hecker Filho, Fidelidades, onde,
numa de suas prosas poéticas, ele conta que, antigamente, deixava
bilhetes, livros e quindins na portaria do prédio do Mario Quintana:
"Para estar ao lado sem pesar com a presença".

Há outras histórias e
poemas interessantes no livro, mas me detive nesta frase porque não
pesar os outros com nossa presença é um raro estalo de sensibilidade.

Para a maioria das pessoas, isso que chamo de um raro estalo de
sensibilidade tem outro nome: frescura. Afinal, todo mundo gosta de
carinho, todo mundo quer ser visitado, ninguém pesa com sua presença
num mundo já tão individualista e solitário.

Ah, pesa... Até mesmo uma relação íntima exige certos cuidados. Eu bato
na porta antes de entrar no quarto das minhas filhas e na de meu
próprio quarto, se sei que está ocupado. Eu pergunto para minha mãe se
ela está livre antes de prosseguir com uma conversa por telefone. Eu
não faço visitas inesperadas a ninguém, a não ser em caso de urgência,
mas até minhas urgências tive a sorte de que fossem delicadas. Pessoas
não ficam sentadas em seus sofás aguardando a chegada do Messias, o que
dirá a do vizinho. Pessoas estão jantando. Pessoas estão preocupadas.
Pessoas estão com o seu blusão preferido, aquele meio sujo e rasgado,
que elas só usam quando ninguém está vendo. Pessoas estão chorando.
Pessoas estão assistindo a seu programa de tevê favorito. Pessoas estão
se amando. Avise que está a caminho. Frescura, jura? Então tá,
frescura, que seja.

Adoro e-mails justamente porque são sempre bem-vindos, e posso
retribuí-los sabendo que nada interromperei do lado de lá. Sem falar
que encurtam o caminho para a intimidade. Dizemos pelo computador
coisas que face a face seriam mais trabalhosas.
Por não ser ao vivo, perde o caráter afetivo? Nem se discute que o
encontro é sagrado. Mas é possível estar ao lado de quem a gente gosta
por outros meios. Quando leio um livro indicado por uma amiga, fico
mais próxima dela. Quando mando flores, vou junto com o cartão. Já
visitei um pequeno lugarejo só para sentir o impacto que uma pessoa
querida havia sentido, anos antes. Também é estar junto.

Sendo assim, bilhetes, e-mails, livros e quindins na portaria não é
distância: é só um outro tipo de abraço.

quinta-feira, novembro 07, 2002